Lúcia Tavanti
Acabei de ver mais um cachorro na estrada
Dor de cabeça, garganta ressecada
Sinto saudades da minha família
Mas a vontade é mais forte
É mais forte em mim agora
O bom é saber que não se pode entender
Se perder e se achar pra poder se entender
Sua própria vida lhe ensinou a caminhar com as próprias pernas
Resta agora você se livrar do mal
Que te corrói e te destrói
(Música -Não Deixe o Mar te Engolir- Charlie Brown Junior)
“Comecei com a maconha; aí fui esticando para a bebida, depois para a cocaína e terminei no maldito crack”.
“Eu lembro que saí na madrugada pra buscar cocaína, e na época tinha acabado e para não perder a viagem eu experimentei o crack. Aí, foi o desastre”.
“Ilusão dizer que irá apenas experimentar. A busca por sensações diferentes não cessa. Somente evitando a primeira tragada é que você ficará salvo de terminar numa sarjeta, como indigente”.
“A vontade de parar, tem que partir de você. Só de você”.
São alguns depoimentos corajosos de quem está fora do vício há algum tempo, porém, ainda lutam contra a chance da recaída.
O Centro de Orientação e Reintegração ao Dependente de Álcool (Cordeal) em Foz do Iguaçu, foi o local escolhido pela reportagem para essa matéria especial.
O abrigo idealizado e construído por um ex-dependente de álcool, abriga homens que como eles mesmos se auto definiram, tinham chegado ao fundo do poço.
Ficamos cientes e pudemos acompanhar de longe a rotina e regras diárias a eles impostas. A nós nos foi permitida a entrevista com quatro dos mais de quinze que fazem daquele lugar, hoje, suas moradias. E por que não dizer, a retomada de suas vidas.
Ulisses, ex policial e agora colaborador da casa de recuperação e Alessandro, pedreiro; são os personagens principais e reais dessa história. “Limpos” há seis e dois anos respectivamente, nos narram momentos de verdadeira degradação humana.
Autoridades achavam que o crack quando chegou ao Brasil, não sairia do consumo dos mendigos, dos pobres, dos guetos, das favelas.
A droga rompeu isso. Conquistou as demais classes sociais.
O ex- policial, bem articulado e ponderado nas palavras, revela que após mais de oito anos como usuário, sente-se privilegiado por não trazer consigo nenhuma sequela, já que a droga age diretamente no cérebro, queimando neurônios.
Pergunto se ele pode me afirmar que a primeira tragada vicia. Temos então uma pequena pausa. Os olhos do entrevistado parecem procurar num passado não muito distante, aquele momento, aquele hiato em sua vida.
“Sim, ela vicia. Porque ela vai deixar ali um referencial de prazer e de satisfação. Agora mesmo estou falando e tenho a sensação do medo de uma recaída”.
Ulisses prossegue dizendo que o crack primeiramente lhe tirou o emprego. Em seguida, a família, até o ponto de ele perder o contato com o mundo externo, movido pela compulsão à droga que é intensa e ininterrupta.
“Passava dias sem dormir, sem tomar banho. Nesse mundo, não existem horários, nem regras”, ressalta Alessandro.
Regras essas inúmeras vezes quebradas, quando sem dinheiro para comprarem a “pedra”, efetuavam pequenos roubos em suas próprias residências em nome do sustento desse vício. Passos rápidos para uma desgraça absoluta.
“Perdi a motivação pra fazer qualquer coisa, perdi o respeito, perdi o amor próprio, perdi o direito de desenvolver o papel de pai, perdi a dignidade. Perdi todos os valores que o ser humano tem. Tudo aquilo que é construído durante uma vida. Tudo isso foi perdido”.
Hoje, o que os leva a não voltar mais para esse mundo?
Exatamente o resgate desses valores que estavam perdidos. São usados como uma arma poderosa, para que não os coloquem mais uma vez, na mira eminente da morte.
O verbo perder talvez jamais ganhe tanta força e representação como na voz e na vida de quem um dia viveu neste triste cenário e deu um passo à frente, quando suplicou por ajuda.